Carpe Noctem

Sirva-se do rubro licor que em nossas veias corre...
Se bem vindo ao profundo de minha alma!

domingo, 8 de maio de 2011

Nasce uma cadente - Part II

Quando Harley entrou no berçário branco e bem iluminado estava irritada. Sua vida havia desmoronado. Tudo com o que ela havia sonhado simplesmente caíra como pedras soltas na tempestade. Seu futuro acabara quando a pequena “pestinha” resolvera nascer.
A ruiva lançou um olhar de deboche para a antessala onde um grande vidro transparente cobria toda uma parede permitindo a visão de diversas “caminhas” diminutas onde repousavam varias crianças que aguardavam a liberação médica para voltar aos braços das respectivas mães ansiosas.
Antes mesmo do nascimento a criança já era indesejada, “uma parasita” como foi chamada pelos sábios de Hariden, onde seria treinada nas artes da magia.  Hariden era o centro do universo e fonte de toda a energia magica existente. Uma construção magica que flutuava acima da atmosfera terrestre num plano superior, longe o suficiente para passar despercebido. O plano de Hariden era um lugar vazio e desabitado de onde é possível acessar todos os outros planos existentes com seus universos paralelos e mundinhos fechados. “O lugar mais isolado do mundo” pensou a garota.
- Senhorita, posso lhe ajudar? – uma enfermeira loira (daquelas que aparecem que estampam os calendários masculinos, com seu cabelo liso e amarelo, os lábios vermelhos e o rosto bem maquiado) bloqueava o caminho de Hey.
A garota analisou a postura da mulher e uma ponta de desconfiança surgiu em seus olhos.
- Eu procuro um bebê que teve alta hoje de manhã. É uma menina chamada Cassídia Lee Vetra. Filha de Hérmia Lee D. Vetra e Aleck Lee. Eu sou a guardiã dela e tenho licença para buscá-la. – respondeu Harley a contragosto.
- E você trouxe a papelada para dar baixa? – a enfermeira perguntou consultando sua prancheta onde constavam os nomes dos bebês que haviam tido alta naquele dia.
- Sim. Meu nome é Harley Daniel. – a jovem entregou os papeis da autorização para a enfermeira impacientemente.
- Você adotou a criança? – os olhos claros da enfermeira se levantaram num misto de curiosidade e duvida. O batom vermelho dela era de um tom tão vulgar que fez Harley imaginar se ela já não havia, mesmo, trabalhado em uma casa de estripes.
- Quase isso. – A ruiva cortou a mulher duramente encerando assim de vez a conversa.
- Entendo. A mulher folheou mais algumas páginas em sua prancheta e Harley revirou os olhos, interiormente suspirando melodramática.
A mulher aceitou a resposta sem questionamentos, dirigindo-se logo para o salão do berçário. Harley aguardou-a na saleta de espera bem iluminada.
A ruiva encostou-se a parede para esperar a volta da enfermeira. De onde estava era possível observar uma família do outro lado, espremendo-se contra o vidro para observar os bebês.
Um homem calvo, provavelmente o pai, tinha os olhos mareados e um sorriso abobalhado estampado na face. Brincava ridiculamente com o bebê através do vidro espesso, fazendo gracejos e caretas.
Harley olhava o homem com desprezo. Como alguém poderia ficar tão ridículo? Isso era uma das muitas coisas que ela não entendia nos humanos...
- Perdeu algo no papai feliz? – uma voz masculina grave falou a suas costas, perto demais.
“Riven” – pensou a garota, mais do que ninguém, odiava a habilidade do homem de mover-se em silêncio absoluto. Ele sempre a pegava de surpresa.
- Oi. – sua voz saiu mais baixa do que pretendia quando se virou e deu de frente com a impressionante figura negra.
- O que você está fazendo aqui? Nunca pensei em você como uma pessoa que gostasse de visitar um berçário! – um sorriso lupino tomou a face clara, porém sem chegar a atingir os olhos azuis abissais.
Harley se afastou uns dois ou três passos, tomando uma distância segura do homem.
- Eu vim buscar a Cassídia. – seu rosto tingiu-se de vermelho como tinta em papel branco.
O sorriso de Riven sumiu, dando lugar, quase inconscientemente, ao sentimento de perda que ele tanto negara nos últimos meses.
- É meu trabalho, busca-la faz parte do trabalho do guardião. – Harley tentou sorrir, mas também havia sentido o buraco em seu peito lembrá-la de sua presença.
 - Eu fiquei sabendo mesmo que a criança já havia nascido. Aliás, foi por isso que eu vim, quero vê-la.
Riven mantinha os olhos baixos, repentinamente muito interessado em examinar a ponta do tênis de marca que usava. A jaqueta de couro preta estava entreaberta deixando à mostra a camisa muito branca.
- A-a enfermeira foi buscá-la. Deve voltar logo.
Como que se recuperado do choque inicial, Riven a olhou pensativo e ela percebeu isso no mesmo instante. Havia um brilho saudoso nos olhos negros do rapaz, quase que maligno.
Neste momento a enfermeira retornou, trazendo com sigo um embrulho de panos claros, mais parecido com um casulo do que com um bebê.
- Aqui está a pequena e a bolsa dela. As coisas que foram trazidas estão todas aqui. – A enfermeira entregou a bolsa infantil à garota ruiva e, sem tirar os olhos de Riven em nenhum segundo, disse:
- E quem é o senhor? – ela segurava o embrulho de panos roxos distraída sem perceber que Harley havia estendido os braços para receber a criança.
- Sou tio do bebê. – mentiu ele.
A enfermeira apertou os lábios e entregou o embrulho para Harley, olhando suspeita de um para o outro.
De longe eles se passavam perfeitamente por um típico casal. Riven era um pouco mais alto do que ela (quase todos poderiam ser mais altos do que Harley) o que ajudava na construção do estereótipo, ela era pequena e miúda, ele era alto e forte. “Como um casal de cinema.” Harley riu ao pensar nisso e Riven a olhou interrogativo, olhar este que fora ignorado.
Entretanto, se você os olhasse mais de perto, se conhecesse sequer o mínimo sobre estes dois, perceberia o quanto eram distantes. Eles pertenciam a mundos diferentes, eram o casal mais errado que pudera haver no mundo. Riven em sua escuridão taciturna e Harley em sua vivacidade contida.
O rapaz fitou longamente a pequena criança nos braços de Hay enquanto a enfermeira se retirava para cuidar dos outros bebês depois da longa palestra de como dar os primeiros cuidados à uma criança dirigida a Harley.
- O que você ainda está fazendo aqui Riven? – a ruiva havia percebido o rumo que os pensamentos do rapaz tomavam e irritou-se. – Não deveria estar em alguma “missão” para sua rainha? – esta ultima palavra foi sussurrada, somente por precaução.
- Bem é para isso que estou aqui. Clio pediu para que eu viesse e fizesse parte da guarda do bebê até Hariden. – Ele parecia sem graça.
- Ela já tem toda a escolta necessária.  – Porém Harley sorriu inconscientemente ao pensar na ideia de ter o “anjo de Clio” a escoltando, mas logo teve de espantar este pensamento.
“Você deve cuidar da criança, ensiná-la. Você foi criada para isso” – as palavras de Cornélia reverberam na sua mente.
Enquanto caminhavam para fora do hospital Harley resolveu olhar o rosto da criança somente por curiosidade, pois muitos haviam dito que a pequena provavelmente nasceria muito parecida com a mãe.
Mas quando Hay fitou o rosto da pequena garotinha tudo a sua volta parou. A ruiva podia ouvir a voz de Riven ao longe falando com ela, porém todas as palavras pronunciadas foram desperdiçadas, Harley não ouvia nada, não sentia nada, o mundo eram aqueles olhos abertos e curiosos. Uma raiva desumana subiu-lhe pelas veias e as injustiças queimaram lhe a língua... Aqueles olhos... Idênticos aos da mãe, profundos e secretos, porém estes eram de uma cor nova, única...
Inconscientemente, a pequena ceifadora já brincava como os destinos alheios como brinquedos infantis. Foi isso o que aconteceu ali: Harley mesmo a odiando se sentia totalmente presa a esse destino. Via em seus olhos a mãe, antes tão doce e inocente; a ruiva sentia a necessidade que a pequena tinha dela. A ligação.
Ao olhar para Riven, já não sentia a dor, somente devoção.